Desde que me recordo, sinto que existe um pedaço de alguma coisa mal resolvida na minha garganta.
Em Manaus, a gente aprende desde cedo que quando se engole uma espinha de peixe precisa rapidamente comer banana com farinha. Não adianta beber água ou comer outra coisa. A mistura desta fruta com mandioca é o remédio que resolve o engasgo.
O problema é que quando a espinha desce, normalmente ela fere a garganta. E você pode passar um ou dois dias achando que a espinha ainda está lá, o que dá um constante desespero.
Cá estou convivendo com a minha espinha entalada na garganta há algumas décadas. Ela é grande demais pra engolir e desconfio que pode me matar.
Não sei do que ela é formada, porque ela existe e se ela ainda está mesmo lá ou se está só machucado. Na dúvida, tenho procurado receitas para fazer essa digestão: busco nos livros, em amigos, em amores, no trabalho. Faço meditação, yoga, terapia, longas caminhadas com o meu cachorro, tomo sorvete e depois me canso.
Ano passado, decidi ser bastante. Li todos os livros que quis. Ouvi todos os discos que estiveram ao meu alcance. Conversei com estranhos. Dancei do meu modo esquisito em festas. Viajei. Vi amigos antigos e ri muito com os novos. E fui ao cinema.
Numa dessas idas, escolhi o filme sem olhar a sinopse e assim cai em A pior pessoa do mundo.
A sensação que tive a cada minuto que se passava era de que estava caindo num abismo. Olhar pra Julie e para todos os outros personagens e me ver um pouco lá fez doer a garganta. Voltei pra casa e digeri.
Conversei com estranhos. Vivi situações cômicas e outras bizarras. Não quis falar com ninguém, só dormir. Acordei cedo pra nadar e fiz amizade com velhinhos cujos filhos têm idade para serem meus avós.
Encontrei em livros as frases que poderia ter escrito, e em shows a sensação que me faltou nos últimos dois, três anos ou mais. Abracei um bocado de gente e brinquei com alguns cachorros. No fim, tenho passado os meses assim: consumindo e digerindo.
Ontem, vi novamente o filme. E lá estava a sensação estranha, mas dessa vez, confortável. Sentir-se a pior pessoa do mundo sempre foi algo que me acompanhou. Sempre na sensação de ser insuficiente, timing errado, muito ou pouco, fora do tom.
A diferença é que, dessa vez, ver o filme me mostrou que se um dia você já se sentiu a pior pessoa do mundo é sinal que você parou pra pensar nisso e isso, hoje em dia, já me parece ser um bocado.
Eu ainda estava nos personagens, mas dessa vez nas falas boas e ruins. Nas expressões tristes e nas felizes. Na hora da dança e da ansiedade.
Entendi que essa coisa presa na minha garganta foram todas as vezes em que tentei ser quem não sou. Todas as vezes que tentei agradar pra não magoar. Todas as vezes que magoei mesmo assim e tantas outras situações em que fiz ou deixei que fizessem me sentir a pior pessoa do mundo.
E essa coisa pode até continuar lá, mas agora já posso comer, dançar, rir e viver situações engraçadas, porque aprendi a minha própria misturinha pra empurrar a espinha pela garganta. E, sinceramente, agora acho que não me mata mais.
PS: O filme pode ser alugado em várias plataformas digitais, caso você também tenha uma coisa entalada e queira digerir.